Á mulher de César não bastava ser honesta, devia parecer honesta... mas tinha de ser honesta, era uma condição necessária... Em Portugal, na análise ao estado do sítio, a mesma honestidade devia ser exigida a quem procura aparentar ser honesto, mas não o é.
Repetida à exaustão, a frase "vivemos acima das nossas possibilidades" é de uma tremenda desonestidade quando usada, como o é, de um modo generalizado.
Quem viveu acima das suas possibilidades? O Estado? As Familías? Todos?
Esta acusação é feita, contextualize-se, num país onde o salário médio ronda os 808 euros líquidos e há 550 mil trabalhadores que ganham o salário mínimo (dados de Junho divulgados pela SS); onde, em Agosto de 2010, a média das pensões pagas aos portugueses pela Segurança Social no primeiro semestre era de 397 euros e estava perto do limiar da pobreza estipulado em 354 euros.
Ou seja, para que fique claro, apesar de em média (quando se fazem generalizações é a média que deve ser tida em conta na argumentação) os trabalhadores portugueses ganharem 808 euros e os reformados uns espantosos 397 euros que ficam 43 euros acima do limiar de pobreza, ambos são acusados de viverem acima das suas possibilidades...
Face a estes números, é de louvar que alguém consiga viver, quanto mais acima de quaisquer possibilidades...
Poderá pensar-se: "pois, lamentavelmente ganham pouco mas as famílias endividaram-se sem saber viver com o que ganharam". Ou, usando a visão Jonet do Mundo, andaram a pedir emprestado para alimentar o luxuoso vício de comer bifes todos os dias...
Um disparate de todo o tamanho e sem qualquer fundamento na realidade quando se fala de um modo genérico...
Quando se diz haver taxas de endividamento das famílias de 129% face ao rendimento anual disponível é preciso saber aquilo que se está de facto a dizer e em que se traduz.
Em primeiro lugar... ninguém está à espera de pagar num ano , nem pessoas, nem empresas, nem Estados, toda a dívida que contraem. E contraem dívida para melhorar as suas condições de vida (independentemente dos juízos de valor que cada um faça sobre o que é qualidade de vida para uns e para outros) e porque, e este é o ponto mais importante, têm expectativas de que a seu rendimento melhore ou na pior das hipóteses se mantenha (alguém acha ilegítimo ter esta perspectiva?), enquanto em simultâneo a inflação ajuda a que o valor da dívida diminua (600 euros de prestação da casa hoje, não têm o mesmo peso no orçamento familiar daqui a 10 anos).
Face a um nível de endividamento de 129% é absurdo que se ache o mesmo preocupante e crime de lesa pátria. Estamos a falar de um valor de dívida que se paga com 15,5 meses de ordenado. Quinze ordenados e meio bastam, em média, para liquidar toda a dívida das famílias...
Há casos de endividamento maior, é evidente que sim,
200 mil famílias portuguesas enfrentam uma taxa crítica de esforço financeiro (casos em que o peso dos encargos da dívida pesam mais de 40% do rendimento). Mas mais de 60% da população em 2012 não tem quaisquer dívidas à banca e no universo de 38% de agregados que têm dívidas a taxa mediana de esforço é de 16%.
Houve assim quem, de facto, vivesse acima das possibilidades , mas as famílias (no seu todo, tendo em conta os dados citados) não o fizeram, viveram com as possibilidades que lhes são dadas também pelo crédito, e, prova disso mesmo, a larguíssima maioria cumpre as obrigações que tem para com o Estado e com os credores, apesar dos juros escandalosos cobrados pela banca e da absurda carga fiscal.
E, espanto, as famílias até poupam, precisamente porque não têm de pagar dívidas em apenas um ano. A poupança bruta das famílias em % rendimento disponível das famílias foi de 9,7 em 2011... Nada mal para famílias genericamente rotuladas de sobreendividadas.
Ou seja, em cada ano, contas feitas aos encargos anuais e receitas anuais, as famílias têm superavit (mais que cumprem o Pacto de Estabilidade e Crescimento).
Confundir a situação de endividamento das famílias com a do Estado (com uma
taxa de esforço financeiro este ano de 70,5%), e usar isso como chantagem emocional é absolutamente inaceitável.
Com o Estado há de facto um sério problema, mas não deveria ser a dívida pública ir atingir os 111,6 % do PIB o motivo de alarme, pelas mesmas razões já notadas para as famílias. Só o é face à incapacidade de entre o deve e o haver, a cada ano, o Estado ter saldo positivo e, assim, baixar o peso relativo do esforço com a dívida. Ao contrário das Famílias, o Estado não consegue fazer o exercício conjunto de pagar dívidas, consumir (investimento na economia, oferta de serviços públicos e apoio social) e poupar.
Tomara mesmo que Portugal ainda tivesse capacidade de se endividar, porque aí não seria necessária qualquer troika de dinheiro por condições. Não tem, porque a máquina do Estado é incapaz de parar de gastar mais do que o que a receita que obtem e apenas isso deve merecer discussão. E este Governo só sabe aumentar artificialmente a sua "qualidade de vida", por transferência directa do rendimento das famílias.
Ao contrário das famílias, o Estado não sabe gerir os recursos anuais disponíveis nem a possibilidade que lhe é dada pelo crédito interno e externo de, pelo investimento desse crédito, viver, de um modo sustentável, cada dia acima das possibilidades que teria sem esse crédito. Era de esperar que esse crédito e o outro tipo de crédito dado pelos portugueses aos políticos em cada votação se traduzisse em investimento e na concretização na realidade das possibilidades artificiais que já estavam a ser dadas hoje. Pior, o Governo optou, ao invés de reduzir despesa e gerar condições para aumento de receita, por manter o estilo de vida à custa de uma descarada retirada de rendimento disponível de famílias e empresas, que só podem ser acusadas de ingenuidade face à capacidade dos políticos cumprirem as expectativas depositadas.
As famílias portuguesas fizeram um crédito habitação para terem, 30 anos antes de a poderem pagar na totalidade, a casa que esperavam poder vir a ter. E só por falta de senso se pode achar isto ilegítimo (as famílias apostaram num futuro melhor, acreditando na capacidade própria para o concretizarem e isto revela ambição e confiança). Do mesmo modo, pagaram licenciaturas e mestrados aos filhos, antecipando uma vida melhor para os seus que recompensasse o investimento feito.
E mesmo depois do estoirar da crise, as famílias continuaram a conseguir manter alguma dignidade de vida, ajustando o consumo, como se nota nas estatísticas, enquanto o Estado nada fez para conter gastos e aumentar receitas induzindo crescimento económico e confiança nas famílias e empresas. Muitos só não podem hoje não manter uma vida acima do que lhes seria possível sem crédito, porque o Estado, ao invés de resolver os problemas ineficiência da máquina, decidiu optar pela solução mais fácil de espremer mais os contribuintes, retirando às famílias, parte ou a totalidade da margem que tinham para viverem orgulhosamente com dívidas, pagá-las, consumirem e pouparem. Para com o conforto dado pelo crédito, viverem já hoje acima das possibilidades dadas por um Estado que revelou ao longo de décadas ausência de estratégia e incapacidade para gerir a "coisa pública" e que, face a essa incapacidade, se devia coibir de destruir, com políticas de austeridade pela austeridade, aquilo que ainda funciona no país: a capacidade das famílias gerirem o seu dinheiro. Familías a que o Estado nada tem a ensinar e com que tem ainda muito que aprender, sobretudo em honestidade.